quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Carnelutti e o papel do advogado

Marco Aurélio Depes

 
O professor Francesco Carnelutti, nascido em Udine (Veneza) em 1879, escreveu, dentre muitas, uma pequena obra que se propõe atual até os dias de hoje - “As Misérias do Processo Penal”. É uma autêntica antecipação dos tempos em que vivemos.  Representa sua profunda experiência no exercício de advocacia penal.  Faz, em seu livro, uma radiografia do drama da Justiça Penal e as incompatibilidades entre o Juiz, Ministério Público, advogado e acusado.

O livro demonstra o sofrimento e as humilhações porque passam não só o acusado, mas também o advogado, na sua peregrinação para promover a justiça em um mundo tão injusto e desigual. Mundo corrompido por interesses de uma classe dominante insensível e praticamente imune à repressão penal, livrando-se com facilidade, em todos os níveis, sobretudo através da corrupção. Aliás, como  captei das preciosas lições de Heleno Fragoso; lições estas que permeiam este despretensioso artigo.

Classe dominante abordada sarcasticamente pelo professor Carnelutti como sendo “civilizada”. Ora, se a classe dominante é a civilizada, qual seria a classe dos “incivilizados”?  Aliás, pergunta difícil e cruel, mas de fácil resposta. Os “incivilizados” são o resultado do débito social; são os habitantes dos bairros pobres que estão na mira do aparato policial-judiciário repressivo e que, quando colhidos, são virtualmente massacrados pelo sistema; os “incivilizados” são as pessoas a quem a sociedade deve alguma coisa, que não pode ser o internamento punitivo, mas, sim, o direito a ser educado, instruído, tratado e preparado para o trabalho.

Mesmo com a predestinação de Deus para que o homem possa coexistir, a conclusão aduzida é que, muitas vezes, o homem não reprime a vontade de satisfazer seus interesses, mesmo quando eles se incompatibilizem com a convivência. Reconhece-se o individualismo como traço distinto e marcante da pessoa humana. Esse individualismo, essa divisão da sociedade, é retratado no livro, desde o início, quando o professor mostra hierarquicamente dentro de um Tribunal de Justiça a posição de destaque do Juiz e do Ministério Público em detrimento do advogado e do acusado.

Com a sensibilidade que só aflora nas pessoas predestinadas ao bem, percebeu o professor Carnelutti que essas distinções, essas segregações não seriam o caminho adequado a percorrer. Para sustentar sua tese o livro faz referência a São Francisco de Assis. Transcrevo: “A verdade é que São Francisco, justamente porque melhor do que qualquer outro interpretou Jesus Cristo, desceu mais fundo no abismo do problema penal. Francisco, só Francisco, compreendeu, beijando o leproso, o que quis dizer Jesus com o convite a visitar os encarcerados”. Este trecho merece profunda reflexão!  

Em síntese, se fizermos um estudo histórico–comparativo chegaremos à conclusão que, pelo menos aqui no Brasil, muito há que se construir para fortalecer o relacionamento entre o Estado e o Cidadão. A administração da justiça criminal constitui o mais dramático aspecto da desigualdade da justiça, sendo nela puramente formal e inteiramente ilusório o princípio da igualdade de todos perante a lei, dogma dos regimes democráticos. Mas, enfim, repito, estamos nos bancos de uma faculdade de direito para insistir na responsabilidade dos advogados, como homens da lei e do direito, cujo compromisso é a permanente luta pela realização da justiça. Os advogados têm de estar na linha de frente da defesa dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. É esta a autêntica responsabilidade histórica que nos resta assumir.   
Fonte:  www.marciodepes.com.br                   

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