segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Advocacia criminal está nas minhas células

Edição e reportagem: Gaudêncio Torquato e Solange A. Barreira

Waldir Troncoso Peres já foi saudado como "lenda viva das tribunas do júri" e como "príncipe
dos advogados criminais". Não há exagero nisso. A carreira brilhante faz dele um dos maiores
criminalistas do Brasil, destacando-se, sobretudo, na defesa de passionais. Mas Troncoso Peres
é avesso a bajulações. Como também é avesso a entrevistas e a ostentações. De origem
humilde, nasceu em Vargem Grande do Sul, no interior paulista. Seu escritório – próximo à
Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde se formou em 1946 – demonstra bem isso:
mobília modesta, sem extravagâncias, apesar de ocupar todo um andar do prédio. Em sua sala
de trabalho, destaca-se uma estante abarrotada. Antes de começar a falar com exclusividade
para o Jornal do Advogado, saca de lá um das muitas obras, retira os óculos, aproxima a vista
comprometida da página, faz uma breve pesquisa. Fecha o livro e, em segundos, transforma-se
numa autêntica metralhadora de idéias. Sua retórica, que fez fama e legenda nas tribunas do
júri, é perfeita. Imbatível. O raciocínio, cristalino. Aos 78 anos, e com mais de meio século de
advocacia, esmiuça cada tema. Além de idéias muito bem concatenadas, ele oferece, aqui,
uma lição de vida.
Como e quando o senhor decidiu direcionar a sua carreira para o Direito Criminal?
Waldir Troncoso Peres – Foi um imperativo subjetivo. Aos 21 anos, por um apelo interior, um
comando do meu coração, fiz meu primeiro júri em Casa Branca. A cidade tinha quatro
advogados. Dois estavam viajando e dois se deram por impedidos. Estava começando a cursar
o quarto ano de Direito. Eu não tinha permissão legal para defender, mas, pela falta de
defensor, fui nomeado pelo juiz. Desde então, aquilo me seduziu, me encantou, me deixou
feliz e eu passei o resto da vida aqui dentro deste escritório, levando avante minha felicidade.
O senhor defendeu mais de 130 homens e mulheres que mataram seus cônjuges. Entre eles,
o famoso caso do cantor Lindomar Castilho. Quem ama mata?
Waldir Troncoso Peres – Quem ama pode matar. Acredito no crime por amor. Somerset
Maughan tem uma imagem muito interessante a respeito do amor. Ele diz que é um
sentimento tão intenso que o homem e a mulher se fundem. O nascimento do filho é o
resultado dessa fusão. Então, quando existe a ruptura – e a ruptura em regra é unilateral –,
aquele que a sofreu, que é abandonado, rejeitado, é capaz de matar.
Os homens cometem mais crimes passionais?
Waldir Troncoso Peres – Os homens cometem mais crimes por todos os motivos. As mulheres
delinqüem muito menos do que os homens. Provavelmente, porque a mulher é mais
resignada. Tem mais força interior, mais vigor, para resistir às adversidades da vida. Sou um
apologista da mulher.
O júri, hoje, é mais técnico, menos litúrgico. Os opositores – defesa e acusação – não usam
da retórica com tanta pompa e circunstância. O que mudou ao longo dos anos?
Waldir Troncoso Peres – Mudou alguma coisa no aspecto formal. No substancial não mudou
nada. Às vezes, fico muito preocupado com o, digamos assim, estiolamento do júri. Porque é
uma instituição tão benéfica que não pode desfalecer. Acho difícil um homem da minha idade
dizer isso, porque parece que os velhos são sempre os atrozes agressores. Mas penso que se
criou uma nova civilização em que se lê muito pouco. Nos meus tempos de estudante, nosso
divertimento era sentar num bar e fazer concurso para ver quem sabia mais poesia de cor. O
professor Miguel Reale, no livro de memórias dele, explica que a vocação do Largo São
Francisco sempre foi política e literária. Tanto que, encimando as arcadas, há o nome de três poetas. Enquanto que a vocação de Olinda era para a ciência do Direito –o Clóvis Bevilacqua,
os filósofos do Direito, vieram de lá. Quem não lesse no meu tempo, quem ficasse só
estudando Direito era ignorante. E a mocidade de hoje, em termos de leitura me parece que
esqueceu um pouco de que esse é um dever do advogado.
Isso prejudica a capacidade de expressão e de reflexão do advogado?
Waldir Troncoso Peres – Acho que sim. Tem uma frase do Salvador Dalí muito curiosa: Coitado
de nós, que não somos nem cientistas, nem artistas. Eu digo: Felizes de nós advogados, que
não somos nem cientistas, nem artistas, porque a advocacia é a conjugação de uma
sensibilidade estética, de uma capacidade de ser artista, de ter a eloqüência e a força do
artista, além do conhecimento técnico. Essa conjunção é que cria, de alguma forma, um
aspecto altamente positivo do advogado.
Qual a sua opinião sobre a ampliação do júri para outras áreas, como em casos de crimes
políticos, de corrupção ou contra a administração?
Waldir Troncoso Peres — Não tenho dúvida que isso seria a suprema forma de administração
da Justiça. Tenho um grande amigo, que veio da ONU, e ele defende que os crimes de
corrupção, de prevaricação dos funcionários públicos, fossem julgados pelo júri. Porque se eles
representam a comunidade, ela teria o direito de julgá-los. O juiz togado tem que montar uma
estrutura lógica, fazer o triângulo da sentença, que é narrativo, com o núcleo – que é a
argumentação das razões determinantes –, o epílogo, que é a combinação da pena. Agora,
para punir um ladrão político, um ímprobo na administração pública, você não pode exigir essa
prova silogística, absolutamente lógica. Se você desse na mão do povo, garanto que ele
acertaria na decisão. Porém, isso é infactível pela razão de que o Brasil é um país pobre. Nós
temos muitas coisas a fazer antes de chegar aí.
Há alguns anos o senhor anunciou que não faria mais júri. A idéia é não voltar mesmo à
tribuna?
Waldir Troncoso Peres – A não ser que haja alguma razão para mim absolutamente
imprevisível, capaz de me causar uma comoção interior. Por um imperativo econômico, não
faço.
As prisões estão superlotadas, as rebeliões se sucedem diariamente, há facções que
comandam os presídios, enfim, como o senhor analisa o sistema penitenciário?
Waldir Troncoso Peres — Aqui no Brasil, temos um pauperismo a respeito do que seja o
processo pedagógico de instrução nas penitenciárias. Não temos penitenciaristas, que venham
pregando historicamente, para infundir no Governo a necessidade de construir penitenciárias
adequadas. Então, pela carência de cientistas neste ramo, o sistema penitenciário é isso o que
você vê aí: não existe.
E a pena de morte é uma saída?
Waldir Troncoso Peres – minha sensibilidade repugna a pena de morte. E ainda que fosse a
favor, não seria a favor no Brasil. Porque o pressuposto para aplicá-la é uma prova
incontraditável de que aquele cidadão é o agente daquele fato e de que aquele fato foi
praticado naquelas condições. E, aqui, se você for a uma delegacia de polícia e tiver recursos,
fabrica um autor no lugar de outro. Nós não temos nível de civilização, não temos ainda uma
polícia que seja capaz de nos autorizar moralmente a punir um homem assim.
E do Judiciário, que análise o senhor faz?
Waldir Troncoso Peres — O Poder Judiciário é a coluna vertebral da civilização brasileira. Foi o
único Poder que não se contaminou, no curso histórico, com as ditaduras que vêm destruindo
o nosso país periodicamente. Sempre defendeu a nossa liberdade, até quando não havia liberdade. Agora, porque encontram um ou outro juiz corrupto, transferem isso para o Poder
Judiciário. Eu tenho o maior respeito pelo Judiciário. Conheci um ou dois juízes corruptos em
São Paulo. Falam que, por outras bandas, por outros Estados, existe corrupção. Mas a
instituição do Poder Judiciário é o último resíduo da moralidade no Brasil.
Qual é sua avaliação do governo Fernando Henrique ?
Waldir Troncoso Peres— Existe um livro, A Democracia do Futuro, que diz que o Estado ideal é
aquele em que confluirá o maior índice de liberdade, com o maior índice de igualdade. Esse
governo não conseguiu atingir essa confluência. É evidente que tem razões e óbices. Às vezes,
fico na dúvida se quem manda neste mundo hoje é o poder político ou o poder econômico.
Provavelmente o poder político é escravo do poder econômico.
Falando em economia, o que o senhor acha da tendência neoliberal?
Waldir Troncoso Peres — O neoliberalismo é o liberalismo: laissez faire, laissez passer. É
deixar haver o comando da competição como fonte filosófica da concepção do Estado. É
estrangular um Estado e dar para ele duas ou três funções, ou nem lhe dar funções. Em última
análise é a consagração do homem que tem o poder, a força do dinheiro. Quanto tempo vai
durar isso? Assisti a uma entrevista na televisão de um homem muito inteligente, que dizia
que o mal não é a globalização, o mal é a globalização neoliberal. O Tony Blair, primeiroministro da Grã-Bretanha, explica que a globalização é boa. Eu mesmo não acho que a
globalização seja má. Ela é inevitável. Porém, acho que é preciso fazer uma globalização com
mais igualdade. Não sei como vai se ordenar o mundo para lutar contra o neoliberalismo.
Lamento não viver para assistir a essa nova queda da bastilha.
É uma ditadura.
Waldir Troncoso Peres — É claro que é uma ditadura. O Stuart Mill tem uma monografia sobre
a liberdade. Confesso que li numa noite e acordei vermelho. Eu lutava muito contra a ditadura
de Getúlio Vargas e fiquei desvanecido com a apologia que ele faz à liberdade. Ele apregoava
uma liberdade sem conteúdo. A liberdade tem que ter como conteúdo o direito do próximo. O
direito de um homem poder ser educado e educar seus filhos; poder sobreviver, ter vestuário.
A liberdade em si ela não é um fim, é um supremo valor para mim. Mas a liberdade com
direitos imanentes. Agora, é evidente que é preferível a liberdade à cadeia. E, por isso, nós
advogados cumprimos nosso dever de lutar por ela. Se eu não posso lutar pela liberdade com
conteúdo – porque a minha luta é ineficaz – eu tenho convencimento dela e, para quem posso,
eu prego. Mas quero, pelo menos, a liberdade do meu réu.
O senhor é um homem muito dinâmico. O que faz para descansar a mente? Tem algum
hobbie?
Waldir Troncoso Peres— Meu hobbie é ir ao jóquei, aos sábados e domingos. Ia com grande
prazer, agora vou muito pouco. Mas não se trata de descanso. Aí, o problema já é outro. Há
uma razão interior subjetiva para você jogar. Quem joga é a criança e não o adulto. Se você
admitir a tese freudiana, depois da fase analsádica, vem a fase da carência, da disputa e do
lazer. As crianças brigam disputando. Então, não fui capaz de superar a fase lúdica. É um
problema de falta de transcendência da fase. Vive dentro de mim uma criança. E sendo uma
criança, não perdi a fé, o idealismo. Não vivo como um velho. Vivo do sonho, da fantasia, da
palestra, da discussão, do exercício profissional. E me encanto, me deixo seduzir, quero ter coparticipação no todo, no global. Então, se por um lado meu lado criança me leva ao jogo, por
outro, me leva a uma produtividade profissional maior também, a um entusiasmo, a uma
maior força que é a da criança, que luta, que debate e que quer vencer.
O senhor é um homem realizado?Waldir Troncoso Peres— Acho que sou. Para mim, ser realizado é ser razoável advogado
criminal. Não tenho a paranóia e a megalomania de ter projeção. Vivi feliz porque a advocacia
criminal está nas minhas células, na minha corrente sangüínea, está dentro de mim. Não sou
capaz de fazer mais a bipartição entre o cidadão e o advogado, porque eles se conjugaram, de
tal forma, que se integram e se confundem. Mas isso me deu uma felicidade extraordinária.
Agora, no entardecer da minha vida, a minha suprema felicidade é ver essa mocidade ser
melhor do que a minha geração. Ela apanhar o cetro da liderança da advocacia, do civismo, do
patriotismo. Tanto, que vivo fazendo palestras em faculdades de Direito, tentando motivar a
mocidade, para que assuma a sua posição perante o mundo e cumpra o seu dever cívico. Peço
aos moços para serem os juízes e cidadãos daquilo que fizeram no curso do dia, para ver se
estão amando a ciência, a pátria, o próximo. Se eles têm o espírito comunitário, essa
afetividade, quase no sentido panteísta, que integra o homem com outro homem e todos os
homens num homem só; toda a humanidade numa pátria comum, para fazer a felicidade
coletiva. Gosto muito dessa geração vindoura. Existe, ainda, uma intermediária, que também
está a evoluir. Nós vamos progredir. Sou um grande otimista.

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