terça-feira, 7 de abril de 2009

O PENSAMENTO DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA NA ATUALIDADE




Lucia Carine Rocha Corlinos (UERJ)
Ruy Magalhães de Araújo
(UERJ)

O SERMÃO DO BOM LADRÃO

Um dos sermões que mais se identifica com a atualidade brasileira, pregado na Igreja da Misericórdia de Lisboa em 1655, diante de D. João IV e sua corte. Lá estavam também os maiores representantes do reino, que possuíam cargos elevados, tais como: juízes, ministros e conselheiros.

Vieira utilizou-se do púlpito como mensageiro das absorções públicas, à maneira de uma imprensa ou de um palanque político. Apesar de estar na Igreja da Misericórdia, disse ser a Capela Real e não aquela Igreja o local que mais combinava com o seu discurso, porque iria expor assuntos pertinentes à sua Majestade e não à piedade.

Vejamos alguns trechos abaixo:

Levarem os reis consigo ao paraíso os ladrões, não só não é companhia indecente, mas ação tão gloriosa e verdadeiramente real, que com ela coroou e provou o mesmo Cristo a verdade do seu reinado, tanto que admitiu na cruz o título de rei.

Mas o que vemos praticar em todos os reinos do mundo é, em vez de os reis levaram consigo os ladrões ao paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno.

Esta pequena introdução serviu para que Vieira manejasse os seus dardos inflamados contra aquele auditório composto por pessoas da nobreza. E continuou enérgico:

A salvação não pode entrar sem se perdoar o pecado, e o pecado não se perdoa sem se restituir o roubado: Non dimittitur peccatum nisi restituatur ablatum.

Suposta esta primeira verdade, certa e infalível; a segunda coisa que suponho com a mesma certeza é que a restituição do alheio sob pena de salvação, não só obriga aos súditos e particulares, sendo também aos cetros e as coroas. Cuidam ou devem cuidar alguns príncipes, que assim como são superiores a todos, assim são senhores de tudo; e é engano. A lei da restituição é lei natural e lei divina. Enquanto lei natural obriga aos reis, porque a natureza fez iguais a todos; enquanto lei divina também os obriga; porque Deus, que os fez maiores que os outros, é maior que eles.

Baseado no pensamento do filósofo Patrístico Santo Tomás de Aquino, de que os príncipes são obrigados a devolver o que roubam do povo, sem que seja para a conservação e benefício de todos, lembra Vieira terem sido castigados com o cativeiro dos Assírios e dos babilônicos os reinos de Israel e Judá, entretanto os seus príncipes, em vez de cuidarem do povo na função de pastores, roubam o mesmo como mercenários: Principes ejus in médio illius, quasi lupi rapientes praedam. (Ezech. XXII, 27)

Diante do pensamento de Santo Agostinho, é nítida a diferença entre os reinos, onde se evidenciam opressões e injustiças, e os abismos dos ladrões: naqueles os roubos e as extorsões eram muito grandes; nestes os covis de lobos eram representados por reinos menores, e confirma essa proposição narrando de uma passagem histórica com Alexandre Magno:

Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício: porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco ponem latronem, et piratam quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o rei de Macedônia, ou de qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei; todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.

Quando li isto em Sêneca não me admirei tanto de que um estóico se atrevesse uma tal sentença em Roma, reinando nela Nero. O que mais me admirou e quase envergonhou, foi que os nossos oradores evangélicos em tempo de príncipes católicos e timoratos, ou para a emenda, ou para a cautela, não preguem a mesma doutrina.

Seguindo ainda nessas proposições, lança acusações contra os poderosos:

O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera; os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento distingue muito bem São Basílio Magno. Não só são ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões ou o governo das províncias ou a administração das cidades, os quais já com mancha, já com forças roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo: os outros se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam.

Diógenes que tudo via com mais aguda vista que os outros homens viu que uma grande tropa de varas e ministros da justiça levava a enforcar uns ladrões e começou a bradar: lá vão os ladrões grande a enforcar os pequenos... Quantas vezes se viu em Roma a enforcar o ladrão por ter roubado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo, um cônsul, ou ditador por ter roubado uma província?... De Seronato disse com discreta contraposição Sidônio Apolinário: Nom cessat simul furta, vel punire, vel facere. Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo para roubar ele só! Declarando assim por palavras não minhas, senão de muito bons autores, quão honrados e autorizados sejam os ladrões de que falo, estes são os que disse, e digo levam consigo os reis ao inferno.

Vieira novamente vai fazer uso, do pensamento do filósofo Patrístico Santo Tomás de Aquino:

(...) aquele que tem obrigação de impedir que se furte, se o não impediu, fica obrigado a restituir o que se furtou. E até os príncipes que por sua culpa deixaram crescer os ladrões, são obrigados à restituição; porquanto as rendas com que os povos os servem e assistem são como estipêndios instituídos e consignados por eles, para que os príncipes os guardem e mantenham com justiça.

Marcando uma face satírica e anedótica, Vieira fez o seguinte comentário:

Dom fulano (diz a piedade bem intencionada) é um fidalgo pobre, dê-se-lhe um governo. E quantas impiedades, ou advertidas ou não, se contêm nesta piedade? Se é pobre, dêem-lhe uma esmola honesta com o nome de tença, e tenha com que viver. Mas, porque é pobre, um governo, para que vá desempobrecer à custa dos que governar; e para que vá fazer muitos pobres à conta de tornar muito rico?!

Vieira em um outro momento, ao discorrer sobre as investidas portuguesas na Índia, declara sobre a informação de São Francisco Xavier a D. João III, quando São Francisco Xavier denunciava naquela região e em outras, os responsáveis pela administração pública conjugam o verbo rapio em modos e em 1º, 2º e 3º pessoa:

Escreveu Vieira:

O que eu posso acrescentar pela experiência que tenho é que não só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas também da parte de aquém, se usa igualmente a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o verbo rapio, não falando em outros novos e esquisitos, que não conhecem Donato nem Despautério (a). Tanto que lá chegam começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos, é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o misto e mero império, todo ele aplicam despoticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam; e para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e gabando as coisas desejadas aos donos delas por cortesia, sem vontade as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem, quando menos, meeiros na ganância. Furtam pelo modo infinito, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes, em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas; porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados e as terceiras quantas para isso têm indústria e consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, porque o presente (que é o seu tempo) colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e o futuro, de pretérito desenterram crimes, de que vendem perdões e dívidas esquecidas, de que as pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas, e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos. Finalmente nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plusquam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtavam, furtaram, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma, o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar, para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados e ricos: e elas ficam roubadas e consumidas... Assim se tiram da Índia quinhentos mil cruzados, da Angola, duzentos, do Brasil, trezentos, e até do pobre Maranhão, mais do que vale todo ele.

Destemido e ousado, aponta o seu verbo ao rei pessoalmente:

Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se laterones. E depois, corrompendo-se este vocábulo, como afirma Marco Varro, chamaram-se latrones. E que seria se assim como se corrompeu o vocábulo, se corrompessem também os que o mesmo vocábulo significa? O que só digo e sei, por teologia certa, é que em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos príncipes de Jerusalém: Principes tui socii rurum: os teus príncipes são companheiros dos ladrões. E por que? São companheiros dos ladrões, porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões, porque os consentem; são companheiros dos ladrões, porque lhes dão os postos e poderes; são companheiros dos ladrões, porque talvez os defendem; e são finalmente seus companheiros, porque os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo.

Onde achar, a não ser num Santo Ambrósio, num São Bernardino de Sena ou num Savanarola, outra voz que bradasse perante o rei que era cúmplice de alguma forma com o desvio de dinheiro dos súditos que exerciam um cargo perante ele, registrava o ilustre pregador e mensageiro, em um outro Sermão, não tinha observado sem motivo algum, que enquanto os imãs atraem o ferro, os ricos e potentados atraem o ouro?

O que costumam furtar nestes ofícios e governos os ladrões de que falamos ou é a fazenda real ou a dos particulares; e uma outra têm obrigação de restituir depois de roubada, não só os ladrões que a roubaram, senão também os reis; ou seja, porque dissimularam e consentiram os furtos, quando se faziam, ou somente (que isso basta) por serem sabedores deles depois de feitos. E aqui se deve advertir uma notável diferença (em que se não repara) entre a fazenda dos reis a e dos particulares. Os particulares, se lhes roubam a sua fazenda, não só não são obrigados à restituição, antes terão nisso grande merecimento se o levarem com paciência; e podem perdoar o furto a quem os roubou. Os reis são de muito pior condição nesta parte: porque, depois de roubados têm eles obrigação de restituir a própria fazenda roubada, nem a podem demitir, ou perdoar aos que roubaram. A razão da diferença é, porque a fazenda do particular é sua; a do rei não é sua, senão da república. E assim como o depositário, ou tutor, não pode deixar alienar a fazenda que lhe está encomendada e teria obrigação de a restituir, assim tem a mesma obrigação o rei que é tutor e como depositário dos bens e erário da república; a qual seria obrigado a gravar com novos tributos, se deixasse alienar ou perder as suas rendas ordinárias.

Rei dos reis e Senhor dos senhores, que morreste entre dois ladrões para pagar o furto do primeiro ladrão; e o primeiro a quem prometeste o paraíso foi outro ladrão; para que os ladrões e os reis se salvem, ensinai com vosso exemplo e inspirai com vossa graça a todos os reis, que não elegendo, nem dissimulando, nem consentindo, nem aumentando ladrões, de tal maneira impeçam os furtos futuros e façam restituir os passados, que em lugar de os ladrões os levarem consigo, como levam, ao inferno, levem eles consigo os ladrões ao paraíso, como vós fizestes hoje: Hodie mecum eris in paradiso.

O TOMAR O ALHEIO NO BRASIL

Padre Antônio Vieira, perante o vice-rei, marquês de Montalvão, no ano de 1641, na Bahia, trazia a seguinte mensagem em forma de pregação:

Perde-se o Brasil, senhor (digâmo-lo em uma palavra) porque alguns ministros de sua Majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm buscar nossos bens... El-rei manda-os tomar Pernambuco e eles contem-se com o tomar. Este tomar o alheio é a origem da doença. Toma nesta terra o ministro da justiça? Sim, toma. Toma o ministro da república? Sim, toma. Toma o ministro da fazenda? Sim toma. Toma o ministro do Estado? Sim toma. E como tantos sintomas lhe sobrevém ao pobre enfermo, e todos acometem à cabeça e ao coração, que são as partes mais vitais, e todos os atrativos e contrativos do dinheiro, que é o nervo dos exércitos e das repúblicas, fica tomado todo o corpo, e tolhido de pés e mãos, sem haver mão esquerda que castigue, nem mão direita que permeie; e faltando a justiça punitiva para expelir os humores nocivos, e a distributiva para alentar e alimentar o sujeito, sangrando-o por outra parte os tributos em todas as veias, milagre é que não tenha expirado.

Com terem tão pouco do céu os ministros que isto fazem temo-los retratados nas nuvens. Aparece uma nuvem no meio daquela Bahia, lança uma manga ao mar, vai sorvendo por oculto segredo da natureza grande quantidade de água, e depois que está bem cheia, depois que está bem carregada, dá-lhe o vento, e vai chover daqui a trinta, daqui a cinqüenta léguas. Pois, nuvem ingrata, nuvem injusta, se na Bahia tomaste essa água, se na Bahia te encheste, porque não chove também na Bahia? Se tiraste de nós, porque não a dependes conosco? Se a roubaste a nossos mares, porque a não restituís a nossos campos? Tais como isto são os ministros que vêm ao Brasil - e é fortuna geral das partes ultramarinas. Partem de Portugal estas nuvens, passam as calmas da Linha, onde se diz que também refervem as consciências, e em chegando, verbi gratia,a esta Bahia, não fazem mais que chupar, adquirir,ajuntar, encher-se (por meios ocultos, mas sabidos), e ao cabo de três ou quatro anos, em vez de fertilizarem a nossa terra com a água que era nossa, abrem as asas ao vento, e vão chover a Lisboa, esperdiçar a Madri. Por isto nada lhe luz ao Brasil, por mais que dê, nada lhe monta e nada lhe aproveita, por mais que faça, por mais que se desfaça. E o mal mais para sentir de todos é que a água que por lá chovem e esperdiçam as nuvens não é tirada da abundância do mar, como noutro tampo, senão das lágrimas do miserável e dos suores do pobre, que não sei como atura já tanto a constância e fidelidade desses vassalos. O que o Brasil dá, Portugal o leva. Tudo o que der a Bahia, para a Bahia há de ser: tudo o que se tirar do Brasil, com o Brasil se há de gastar.

A CORRUPÇÃO NO BRASIL

Este tema muito tem a ver com a substância do anterior.

Tendo como ponto de convergência o Maranhão, Vieira mencionou, em 1662, as possíveis causas do empobrecimento moral daquela parte dos domínios portugueses, ao discorrer sobre as seguintes faces: a desonestidade, as injustiças e tiranias, os desregramentos e os abusos do poder constituído:

São os interesses dos que governam, porque as rendas dos dízimos de Vossa Majestade em todo aquele Estado, chegam a montar seis até oito mil cruzados, os três dos quais toma o Governador inteiramente e no melhor parado, e na mesma forma se pagam de seus ordenados os procuradores e os oficiais da fazenda, com que vem a ficar muito pouco para as despesas ordinárias das igrejas, vigários, oficiais de milícia e soldados, aos quais se não paga nem a quarta parte do que lhes pertence, com que é força que busquem outros modos de viver e se sustentar, que muitas vezes são violentos, e todos vêm a cair às costas do povo. Assim também levam consigo os ditos governadores muitos criados, que provêm nos melhores ofícios, e eles com confiança no poder de seu amo ou servem com insolência, dominando não só as pessoas, mas as fazendas, de que se recolhem a Portugal ricos e os povos ficam despojados.

Assim mesmo vendem os provimentos das companhias e não uma senão muitas vezes com que não só tiram aquele prêmio militar aos soldados velhos e beneméritos, mas está com isto todo o Estado cheio de títulos, de capitães e de sargentos-mores, que, para sustentar a vaidade do nome, é força que também busquem com opressão alheia, o que por outra via não podem alcançar. O mandar alistar a uns por soldados e riscar praças a outros também é modo de adquirir mui usados dos que governam, com tanta opressão dos que cativam, como dispêndio dos que se resgatam.

Padre Antônio Vieira tomando o Maranhão como modelo. Entretanto poderia ter dito igualmente sobre os mesmos vícios com alusão ao Brasil por inteiro. O Brasil em toda a sua amplitude, sobretudo o Brasil de hoje, dos nossos tempos.

Por conveniência, para concluir o pensamento de Vieira, consentimo-nos reproduzir alguns trechos das palavras de outro gênio expresso de viva voz da língua portuguesa, o notável e eminente Rui Barbosa:

O brasileiro que atravessar a fase atual terá que testemunhar à descendência, com as cãs envergonhadas, uma longa página de amargura e vilipêndio, onde os olhos de nossos filhos buscarão um ponto de refrigério em que espaireçam; um país opulento, inexaurível como a natureza mesma, e, todavia, física e moralmente estagnado, na sua imensa amplidão, como um vasto pânico; um governo lição viva de todas as corrupções; a casa dos padres conscritos feita a grande escola pública da cortesania; a câmara dos deputados aviltada, graças às suas próprias obras, até às vaias das galerias; a magistratura, atirada fora a toga da justiça, a ostentar deslavadamente o escândalo das mais delirantes e indecentes paixões; o executivo dissipando, transigindo, contrariando encargos públicos, sem autorização orçamentária; os ministros da fazenda acumulando montanhas de dívida; a voragem de deficit a escancarar de dia em dia um sorvedouro capaz de tragar dentro em pouco a nossa receita total; a quebra da fé nacional aconselhada nos relatórios das secretarias de estado como inocente recurso de finanças; a falência do estado prevista, receada, talvez iminente como um traço terrivelmente negro no horizonte; a lavoura em profunda e mortal caquexia; o comércio e a indústria, sob a pressão de impostos irracionais, condenados ao mais lastimoso raquitismo; a irresponsabilidade absoluta do poder em todos os graus de hierarquia; a mentira nas urnas, nos melhoramentos oficiais, no orçamento; a instrução pública uma cousa ainda por criar, uma ridícula mesquinharia negaceada; (...) de quando em quando um caráter de estadista enlameado e perdido; um nome lustroso para cada baixeza; as convicções levadas a riso, o cepticismo cínico aplaudido; a desconfiança, a inveja, a gana às reputações sãs, todos os instintos malévolos da servidão curtida subserviente; tudo funcionários ou pretendentes, servilismo e venalidade, indigência e luxo, medo à liberdade e anarquia, afilhadagem e dilapidação, desprezo impertérrito da lei e farisaica idolatria das conveniências pessoais, docilidade ao arbítrio oficial e insubordinação ao dever, um aparato de jactanciosa dignidade e uma pusilânime abdicação do direito, falsificação sistemática das instituições e culto misteriosamente respeitoso à impertinência da papelada administrativa, covardia universal perante a verdade e contubérnio familiar com a hipocrisia sob todas as suas formas...

Inferimos, então, persistirem as mesmas chagas, os mesmos crimes, os mesmos desvios, o mesmo desleixo, , as mesmas desatenções, a mesma incapacidade moral, hoje mais do que ontem, com a culpabilidade conseqüente dos altos interesses econômico-financeiros interligados ao tráfico de drogas, poder que acelera ou retarda os males, onde políticos, administradores, e até juízes, pessoas que dantes nos pareciam dignas de confiança e respeito, enterra-se na lama corrupta.

Nesse instante, em que se comemoraram recentemente os 500 anos de Descobrimento do Brasil, nada mais conveniente do que recordarmos as palavras de Vieira, corroboradas pelo grande escritor Rui Barbosa.

Em meio a esta celebração, esquecemos de refletir. Talvez por arrogância não ponderamos de novo a nossa identidade e condição de povo e nação. Com isso, restará, tão somente, esperarmos por mais 500 anos, talvez até mais que isso, para robustecermos o caráter de raça, que espera outra colonização de outra modalidade.

Eis aí o Brasil de ontem e de hoje.

Referências bibliográficas:

BARBOSA, Rui. O Papa e o Concílio. 2º ed. São Paulo: Saraiva, 1930.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1976.

LINS, Ivan. Aspectos do Padre Antônio Vieira. Rio de Janeiro: São José, 1956.

VIEIRA, Padre Antônio. Sermões. Reprodução facsimilada da edição de 1682. São Paulo: Anchieta, 1943. Organização do Padre Augusto Magne. 3 vol.

------. Cartas. Coimbra: João Lúcio de Azevedo, 1925. 3 vol.

------. Catálogo de obras. Rio de Janeiro: FBN/Eduerj, 1999.

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