Discussões sobre o júri sempre começam e terminam com posições de sim ou de não; guilt or not guilt. Nélson Hungria e Carlos Araújo Lima incorporam bem essa dialética. Os argumentos técnicos de Hungria e as razões apaixonadas de Araújo Lima nunca conduziram a polêmica a uma conclusão. Na incerteza, a discussão prossegue nos céus e o júri continua: — Continua fazendo injustiças, como sempre! diz Hungria, afastado dos problemas da terra há alguns anos, mas ainda convicto de suas opiniões antes conhecidas. — Continua fazendo justiça, fazendo justiça até quando faz injustiça! é a voz firme de Araújo Lima, que entra no salão para a alegria dos seus antigos colegas. Entre um abraço e outro, o assunto da pauta é o juízo final que se aproxima. Hungria propõe que o julgamento seja jurídico; um tribunal constituído só por juízes de tribunais supremos: ele mesmo, Abel Delgado, que presidiu o Supremo de Portugal e um Lorde inglês, para não esticar muito a conversa. Araújo Lima e Alfredo Tranjan não abrem mão de um júri bem popular, formado inclusive por algumas vítimas daqueles tantos que eles defenderam aqui na terra. Ou pelos próprios, desde que tenham feito a reabilitação. Roberto Lyra, Magarinos Torres, Vilma Mendes e Décio Ferraz,[1] promotores para qualquer acusação, acompanham o debate com cautela, mas não escondem o desafio de enfrentar as Becas Surradas de Araújo Lima e Alfredo Tranjan, como se fazia nos Grandes Processos do Júri. Por enquanto, ainda não se decidiu de onde virá a justiça ou a injustiça desse last but not least trial. — Virá do júri! grita Araújo Lima, com a empolgação de início dos debates. — Der Jury nicht! arremata Hungria, como na época dos Comentários, quando só escrevia em alemão para acabar com a má fama de que os penalistas não têm cultura. O doutor Pontes, a quem se atribuiu esse insulto, finge-se de morto; está mais preocupado com os herdeiros do reino dos céus do que com essa “justicinha de bacharéis”. Frederico Marques presidiu os trabalhos e não deu opinião. Mas que não tem simpatias pelo júri, isso não tem. — E nunca tive, e o senhor trate de registrar isso aí na ata, quero dizer, no artigo! vocifera, como quem dá ordens a um escrivão. No mundo inteiro se discute o futuro do júri como se se tratasse de um recém-nascido. Com a origem perdida na história, a idéia de júri pode ser própria dos ingleses, que a consideram um dos pilares do sistema judicial, no que remontam pelo menos ao século XIII e à Magna Carta, quando foi incrementado para substituir gradualmente as ordálias. Mas pode ainda ter sido importada pelos invasores normandos de 1066. Na Magna Carta, de 1215, o julgamento por um júri foi pensado como um direito fundamental: «Nenhum homem livre será detido e/ou preso; esbulhado da sua propriedade; exilado ou destruído de qualquer outra maneira...salvo por um julgamento legal por seus pares conforme a lei local». Entretanto, historiadores modernos acreditam que esta disposição refere-se à necessidade da decisão de um juiz e não de um júri. Isso porque o papel original dos jurados era muito diferente do que hoje se conhece. Como testemunhas que depunham sob juramento, mas não tomavam qualquer tipo de decisão, os jurados eram oriundos da mesma comunidade do acusado e tinham a função de determinar os fatos sob julgamento, usando para tanto os conhecimentos de que dispunham sobre ele e as circunstâncias locais. Por isso, não se pode deduzir da Magna Carta que a expressão «julgamento por seus pares» seja uma referência aos jurados enquanto juízes, se nessa época os jurados não julgavam. Atualmente, os membros do júri (na Inglaterra são 12) são convocados para proferir um veredicto imparcial, sem ter prévio conhecimento do acusado, numa relação de anonimato que é conseqüência do desaparecimento das sociedades medievais fechadas e do crescimento das cidades. Assim, faltando amparo histórico, a idéia de julgamento por pares é irreal, além de saudosista, na medida em que repete um tradição milenar. Nada obstante, ressalte-se que ela sustenta a existência de júri no Brasil. Mas não é só. Muitos juízes e historiadores têm descrito o júri como uma salvaguarda da liberdade individual, usando frases típicas dos debates entre promotores e advogados: «o júri é a luz que mantém viva a liberdade dos ingleses» ou «o júri é o baluarte das nossas liberdades, a glória do Direito Inglês». Todo esse romantismo tem servido de principal argumento dos defensores da liberdade civil, dos profissionais do direito e dos parlamentares, para derrotar, desde 1970, as repetidas tentativas de se reduzir o direito de acesso a ele. A última foi apresentada em 27/02/97 e teve origem nos trabalhos da Comissão Real de Justiça Criminal, instituída quatro anos antes. Propondo aí retirar do júri o julgamento de uma série de infrações, incluindo furto, furto em residência, roubo, roubo com lesão corporal e algumas acusações de obscenidades, esta foi a mais controversa das 352 recomendações feitas pela comissão, não merecendo aprovação. Os juízes deram boas vindas às propostas que visavam reduzir a demora nos julgamentos, mas disseram que em vez de restringir o direito de optar pelo júri, reclassificariam algumas infrações, de forma que elas só pudessem ser julgadas por juízes togados. Jack Straw, à época o The Shadow Home Secretary, hoje no poder como Ministro do Interior e às voltas com o caso Pinochet, disse que os trabalhistas davam boas vindas a muitas das recomendações daquela Comissão Real, particularmente àquela que reduzia de 18 para 17 anos de idade o limite exigido para o julgamento por um tribunal de adultos, em vez de uma corte juvenil. Mas qualquer restrição ao direito de ser julgado pelo júri constituiria um erro: «Se um policial ou um parlamentar ou ainda um Ministro de Estado for acusado de uma infração penal, será que ele não desejaria ser julgado pelo júri? Como é óbvia a resposta, por que negar aos outros o direito a essa opção?» Retomo agora a idéia do título: — O júri é um direito ou uma imposição constitucional? Professores e alunos de Processo Penal dirão que ao júri compete julgar os crimes dolosos contra a vida, por determinação constitucional. E de tal resposta conclui-se que a pergunta não foi compreendida. — O acusado de crime doloso contra a vida tem a alternativa de ser julgado por um juiz togado, em vez de jurados? A resposta, pela prática atual, só pode ser não. O júri, na leitura feita pela doutrina e pela jurisprudência atualizadas, é obrigatório e se restringe ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Esta resposta não é fiel ao texto constitucional. Em primeiro lugar, o júri, na Constituição Federal, é direito e garantia do indivíduo; não é órgão do Poder Judiciário; está inserido no artigo 5.º e não no artigo 92. A propósito, em praticamente todas as Constituições estaduais, o júri foi inserido no título do Poder Judiciário, como órgão deste Poder. Mantiveram na íntegra os textos anteriores à Constituição Federal de 1988, sem perceber a reforma da lei, sem alterar seu texto. Não notaram que uma idéia velha passou a exigir espírito novo. Ainda para ilustrar, a Constituição portuguesa, uma das mais bem concebidas constituições deste século, graças, principalmente, aos esforços de Jorge Miranda, Canotilho e Vital Moreira, trata do júri no título dos Tribunais (Art. 210), que equivale ao nosso Poder Judiciário. Não é direito individual. Se o júri no Brasil é um direito garantido, se é um direito individual por classificação constitucional, não pode ser impositivo; não pode ser obrigatório. A nova doutrina dos direitos e garantias individuais contempla a renúncia a eles. A vida é um direito fácil de se escrever em qualquer lei. Mas há um direito à morte, tão importante quanto aquele, e que já inspira tratados, revendo opiniões incompatíveis com o atual estágio do Estado Democrático de Direito. O domicílio é um direito individual, como é direito individual abrir mão da privacidade pessoal, e assim por diante. No Reino Unido, há cerca de 100 anos existe o direito de opção pelo júri, como uma alternativa aos tribunais de juízes togados, à exceção da Escócia, onde apenas o Ministério Público tem essa alternativa. Em Portugal e nos Estados Unidos, a acusação e a defesa também podem exercer essa escolha. A Constituição Federal autoriza, como regra geral, o julgamento dos acusados pelo Poder Judiciário. A garantia individual é o direito de opção pelo julgamento popular. O constituinte estabeleceu uma garantia mínima, mas não restringiu as possibilidades de julgamento por jurados. Ainda que se tenha aprendido e repetido o contrário, não há proibição constitucional que impeça o legislador de abrir a prerrogativa do júri a todos os crimes previstos no Código Penal e nas leis especiais. Nem para questões cíveis. O que o legislador ordinário não pode é excluir da competência do júri os crimes dolosos contra a vida. Mas pode incluir outros. E caso se troque o verbo assegurar por garantir, o texto ficará ainda mais evidente. Garante-se o júri para julgar os crimes dolosos contra a vida, em relação a qualquer lei infraconstitucional. A conseqüência dessa garantia é bastante clara: se o júri é uma instituição reconhecida como garantia individual, o acusado tem o direito de não optar por ele, sob pena de isto constituir uma obrigação ao invés de assegurar um direito. Outro argumento muito utilizado, principalmente por promotores de justiça em busca de simpatia dos jurados, é o de que o júri é o tribunal do povo, o tribunal da sociedade, como se a participação desta sociedade no julgamento fosse uma garantia a ela assegurada, enquanto vítima. Isto é um sofisma sem amparo constitucional. O júri não é garantia da sociedade vitimada; é garantia do acusado. Na Escócia, a garantia é da sociedade, tanto que só Ministério Público pode optar pelo júri. Na Constituição espanhola de 1978, o júri foi instituído expressamente como garantia da sociedade. No Brasil, a legislação não poderá conceder ao Ministério Público o direito de opção pelo júri, sob pena de inviabilizá-lo como garantia individual. Muitos dirão que essa leitura constitucional é ingênua e simples. É óbvio que o acusado irá optar pelo júri, através do qual tem maiores chances de absolvição. Logo, a obrigação e a alternativa única são uma coisa só. Essa conclusão feita no Brasil não tem base fática. É dedução, é achismo. Ninguém perguntou ao acusado se ele quer ou não ser julgado pelo júri. E isso deveria ocorrer no interrogatório, sem direito a retratação, como em Portugal. No estrangeiro, a experiência é outra. Na Inglaterra, por exemplo, um acusado opta pelo júri a cada 200 casos. E dos processos a ele submetidos, apenas um em cada quatro foi escolha da defesa; os outros três foram da acusação. Pesquisas feitas pela mencionada Comissão Real de Justiça Criminal concluíram que 27% dos que escolheram o júri tinham a intenção, no início do processo, de confessar. Próximo do dia do julgamento, 83% tinham confessado algumas ou todas as acusações. Metade dos que optaram pelo júri acreditou que receberia penas mais leves e enganou-se. Em Portugal, em mais de 20 anos de júri, os julgamentos pouco passam de duas dúzias, a maioria por opção do Ministério Público. O costume de ser julgado por pares tem entre nós a forte tradição do foro por prerrogativa de função dos membros dos tribunais e outros cargos a eles assemelhados. Os iguais julgam os iguais. É por isso que um Ministro do Supremo tem o direito de ser julgado nos crimes comuns por seus pares. No Judiciário, eles não têm outros iguais e por isso julgam-se. Este primado não foi inventado aqui. Como visto, foi inspirado na Magna Carta. Portanto, se os iguais julgam os iguais no Supremo, não havendo distinção entre um homicídio e uma lesão corporal culposa para a fixação da competência, os iguais devem julgar os iguais nos demais escalões sociais. Como já houve casos de juízes e promotores renunciarem ao foro privilegiado, à prerrogativa constitucional de ser julgado pelos iguais, qualquer acusado de crime doloso contra a vida pode, no atual sistema constitucional, abdicar do julgamento pelo júri e ser julgado por um juiz togado. Se será bom ou ruim, não cabe discutir; trata-se aqui tão-somente de um direito a ser exercido pelo seu titular. Concluindo, todos os condenados pela prática de crime doloso contra a vida, após 5 de Outubro de 1988, têm o direito a essa opção retroativa, o que implicará novo julgamento por um juiz togado. Se isto trará chances de melhorar sua situação é problema que cada um avaliará, sem direito a alegar ne reformatio in pejus. É óbvio que os tribunais não têm interesse nisso pelas dificuldades na implementação destas conclusões. Mas isto não minimiza a importância do assunto: é garantia de um direito individual, num Estado Democrático de Direito. Mais cedo ou mais tarde, isso irá acontecer. A menos que se mude a Constituição. Esta foi minha última conversa com Carlos Araújo Lima. Ele, empolgadíssimo com a idéia, gostou do que ouviu. E expressou-se como resumia seu modo de vida: — Se a coisa é boa, digo que é boa. Se é ruim, digo que é boa. Portanto... Fonte do texto: Diaulas Costa Ribeiro, Doutor em Direito Penal Professor Titular de Direito Penal da Uniplac - DF Pesquisador da Universidade Católica Portuguesa -Promotor de Justiça
Sobre o Autor
Roberto Bartolomei Parentoni é Advogado Criminalista - www.parentoni.com - militante há mais de 17 anos, professor e autor de livros jurídicos, especialista em Direito e Processo Penal, atual presidente do IDECRIM - Instituto de Direito e Ensino Criminal - www.idecrim.com.br -
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