Fausto Martins de Sanctis
Juiz Federal em São Paulo
Neste breve trabalho, pretende-se proceder a algumas considerações acerca da culpabilidade, elemento integrante do conceito analítico do crime, e sobre a punibilidade, que não se insere no conceito de delito.
É hoje praticamente corrente a aceitação da teoria da ação finalista:
compreende a conduta apenas se orientada a um determinado objetivo, o qual influi, até mesmo, para a caracterização de um tipo. Como decorrência deste posicionamento, que consagra a ação ou omissão como sendo, no dizer de Hans Welzel, exercício de atividade final(1), num primeiro momento gerou-se certa perplexidade pelo esvaziamento do conceito da culpabilidade, que, até então, contemplava o dolo e a culpa.
O juízo de culpabilidade, segundo Giuseppe Bettiol, "...não diz respeito tanto ao fato externo realizado quanto à vontade que realizou o próprio fato"(2). Não significa, entretanto, uma simples vontade da prática delituosa, caso em que se verifica, isto sim, o dolo, o tipo subjetivo, integrante da tipicidade. Trata-se de censura a uma vontade plenamente consciente da ilicitude. Parafraseando Bettiol, cuida-se mais de vontade ilícita que de simples voluntariedade.(3)
Frank e Goldschmidt muito bem esclareceram esse conceito normativo de culpabilidade no sentido de excluírem os elementos anímicos subjetivos, conservando unicamente o critério da reprovabilidade. Nesse sentido, temos as palavras de Hans-Heinrick Jescheck, para quem "culpabilidade é reprovabilidade da formação de vontade. O conceito de culpabilidade se manifesta, segundo o contexto em que se utiliza, no princípio de culpabilidade, a culpabilidade na fundamentação da pena, e a culpabilidade na medida da pena".(4)
Isto significa que a sanção penal somente pode se impor uma vez constatada a reprovabilidade da formação da vontade do autor do fato, sendo sua medida, sob o aspecto de que nunca poderá superar a pena que ele mereça segundo sua culpabilidade.
Por tudo isso, apresenta-se extremamente importante a possibilidade de a pessoa se determinar de acordo com o seu entendimento, sem a qual falecerá tão importante elemento do crime. Partindo do pressuposto, conforme nos adverte Klaus Roxin, de que o conteúdo da culpa existente na realização dolosa do crime já se expressa no tipo, cabe saber se a culpa indiciada pela ilicitude ficaria excluída por razões especiais.(5)
Com isto, chega-se à conclusão de que efetivamente o conceito da culpa se restringiu para abarcar tão-somente os requisitos que poderiam de alguma forma afastar a consciência do injusto.
São, assim, seus componentes a possibilidade do conhecimento do injusto, que ficaria afastada pelo erro de proibição ou pela obediência hierárquica de norma não manifestamente ilegal, a imputabilidade, arredada pela menoridade (idade abaixo de 18 anos) ou pela doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, e, finalmente, pela exigibilidade de conduta diversa, da qual fica afastada pela coação moral irresistível.
Juan Bustos Ramires, reportando-se aos requisitos da culpabilidade, revela-nos que "o dolo e a culpa não podem ser elementos da reprovabilidade, ainda que não se refiram à possibilidade de motivar-se conforme a norma, senão que implicam, segundo todos reconhecem, uma relação com o fato, isto é, são um aspecto subjetivo do comportamento"(6). Referido autor ressalva, porém, que não se pode, para determinar o conteúdo da culpabilidade, partir do indivíduo, sem que se conceba o indivíduo na sociedade, ou seja, o homem concreto: "...sua relação social concreta, em que se dá seu comportamento como uma forma de vinculação" (...) "Na culpabilidade, em troca, se cuida de considerar ao homem concreto que se vincula dentre dessa relação social concreta; é a consideração desse homem não como simples sujeito, senão como ator, isto é, que cumpre determinado papel designado, mas realizado por ele".(7)
Com isto, parece-nos evidente que na consideração dos elementos da reprovabilidade, tem que se ter em mente que o fato ilícito é fruto de um ato social, dentro da relação social, razão pela qual se devem sempre considerar as condições do autor (biológicas e psíquicas) e sua dimensão social, como bem nos ensina o autor acima aludido.
Assim, entendo pertinente a maioria dos doutrinadores da atualidade consagrarem a culpabilidade como um dos elementos do fato típico, que inclui a tipicidade e a injuridicidade. Sem levarmos em conta a conduta em face da norma, se ela apresenta alguma feição típica e, a partir de então, verificar se coberta por alguma excludente de ilicitude, o que afastaria a injuridicidade, não basta para reputarmos existente ou não um crime. Parece-nos óbvio que caberia ainda a indagação se essa ação ou omissão típica e ilícita se reveste de censura diante das condições biológicas e psicológicas do agente, o que permitiria, sendo estas adequadamente presentes, orientar-se por caminho diverso. Aí sim, haveria completa satisfação dos elementos do crime, levando punição àquele que agiu em desconformidade com o ordenamento penal.
Não se pode, contudo, deixar de afirmar que delito é um todo unitário, mas complexo, de molde que a sua fragmentação permite uma melhor análise do seu conteúdo: Fragoso, nesse diapasão, aduz que o que se faz é uma observação sucessiva das qualidades de um conceito.(8)
Logo, a punibilidade caracteriza-se apenas como conseqüência do reconhecimento da existência de uma infração penal, não integrando o conceito desta, pois, mesmo em havendo a abstração da sanção delituosa, se poderá concluir pela existência efetiva de um delito. Discordamos, assim, do posicionamento de Nelson Hungria, para quem a punibilidade, que configura a nota particular de um delito, é dele integrante.(9)
Para nós, a punibilidade configura elemento essencial da norma penal, sem a qual, faltaria requisito que a aperfeiçoe, mas para a estrutura do delito, mormente de seu conceito analítico, é totalmente dispensável na medida em que fica fora de sua estrutura autônoma. Sendo conseqüência de um delito, este acaba por se revelar como condição necessária para sua ocorrência; é condição indeclinável de um crime totalmente acabado.
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(1) "Toda a vida comunitária do homem se estrutura, para bem ou para mal, sobre a atividade final do homem. Isto pressupõe que os membros da sociedade podem atuar conscientes do fim, é dizer, propor fins, eleger os meios requeridos para sua obtenção e colocá-los em movimento com consciência do fim" (in Derecho Penal Alemán, p.37).
(2) Cf. Direito Penal, vol.II, p.11.
(3) Ibidem, p.13.
(4)In Tratado de Derecho Penal, p.364.
(5) Cf. Problemas Fundamentais de Direito Penal, p.137.
(6) Cf. Manual de Derecho Penal Español, p.360.
(7) Ibidem, p.373-5.
(8) Vide Lições de Direito Penal, p.150.
(9) In Comentários ao Código Penal, arts. 1 a 27, p.187.
Fonte:
REVISTA JURÍDICA VIRTUAL Volume 3, número 33, fevereiro/2002 ISSN 1518-8876
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
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