quarta-feira, 31 de março de 2010

Razões e Perspectivas da Violência e da Criminalidade: Punição Versus Reconciliação

Alvino Augusto de Sá (*)

A violência é um ingrediente das experiências fundamentais que o homem tem de sua própria história, que nos são reveladas através dos arquétipos e mitos, os quais são, portanto, formas como o homem vem vivendo, experimentando e interpretando o fenômeno da violência. Muitas são as fontes onde podem ser estudados esses arquétipos e mitos.

Recorramos a duas: a história bíblica e a mitologia e tragédia gregas. Tanto numa como na outra, as razões da violência encontram-se em leis tiranas que impedem o homem de se igualar a quem o domina, bem como numa relação de profunda rivalidade entre o homem e quem sobre ele exerce o poder, entre o homem e a divindade e entre os próprios homens.

Segundo a versão bíblica, a primeira violência sofrida pelo homem foi a lei tirana "não comerás desta fruta", que serviu de razão para seu primeiro crime, o qual se tornou razão de sua primeira grande punição, a expulsão do paraíso. Portanto, o primeiro crime do homem não foi um ato de violência; sua razão, sim, foi um ato de violência. Resultou daí uma sucessão infindável de crimes, sempre como reações a violências ("razões") que os precederam, e sempre seguidos de severas punições, portanto novas violências ("perspectivas"), até se chegar à expressão máxima de crime e de violência, que foi a morte do próprio Filho de Deus. Por este crime, Ele, o Filho, pediu perdão a Deus em favor de seus algozes, dizendo que "eles não sabem o que fazem". Foi como que a primeira declaração de inimputabilidade do agente criminoso. A Vítima do maior crime da humanidade pediu perdão em favor de seus algozes, reconhecendo que os mesmos não tinham pleno discernimento do que faziam, dadas evidentemente suas condições pessoais, históricas, culturais etc., ainda que não portadores de nenhuma doença ou condição psíquica especial. Somente através do perdão é que se poderia romper com essa cadeia de violências e as perspectivas poderiam ser totalmente outras. Acontece porém que, para a desditosa sorte dos filhos dos homens, embora Deus os tenha perdoado, eles mesmos não se perdoaram. O resultado é que as violências e crimes continuaram e continuam, aguçando-se suas razões e agravando-se suas perspectivas.

A versão bíblica sobre os crimes do homem não está isolada. Dela se aproxima a versão da mitologia grega. Conforme Bergeret (1990), a mitologia grega é rica em práticas de violências e de crimes pelos deuses entre si, entre os deuses e os homens, entre os membros das famílias dos homens, entre pais e filhos. Para Bergeret, os crimes sexuais e, no caso, o incesto, seriam invocados somente como uma forma de buscar tornar mais compreensíveis e mais aceitáveis outros atos de violência. Para o citado autor, a motivação básica ("razões" da criminalidade) de toda essa rede de violências é a sede insaciável de poder, a rivalidade entre pais e filhos, acompanhada do medo de ser subjugado e destruído, tudo isso calcado no instinto de sobrevivência. A temática da tragédia grega gira em torno do desejo do homem mortal de se libertar dos limites a ele impostos pelos deuses e, através do "êxtase", comungar com a imortalidade. Esta ultrapassagem de suas próprias medidas é chamada de "hubris", isto é, uma violência feita a si próprio e aos deuses imortais, o que provoca o ciúme divino e a punição imediata. Temos então inicialmente a imposição de limites por parte dos deuses (dos pais), a proibição de acesso aos seus privilégios ("fruta proibida"), a que se segue a contra-reação do homem frente a esse uso arbitrário da força que visa a manutenção de um estado de privilégios, vindo, como conseqüência, a punição por parte de quem é o detentor desses privilégios. É exatamente o que acontece na tragédia de Édipo, o Rei. Segundo Bergeret (1990), Édipo, pela versão de Sófocles, matou Layo, seu pai, e tomou seu lugar no leito, e não para tomar seu lugar no leito. Portanto, diz ele, o tema fundamental e primeiro do Édipo não é o incesto e sim a violência fundamental, a rivalidade entre pais e filhos, calcada no instinto de sobrevivência.

Jean Bergeret, em "La Violencia Fundamental: El Inegotable Edipo" (1990), apresenta sua teoria sobre a existência de um instinto fundamental no homem, que ele chama de violência fundamental. É um instinto de luta pela vida, uma força que proporciona a expansão do ser, a conquista do espaço, que tende a romper obstáculos que limitam o espaço do indivíduo e lhe criam empecilhos à vida. Não se trata, pois, de uma força cujo objetivo original é a atacar e destruir, mas sim conquistar e garantir a vida. Ocorre que os tais obstáculos são com freqüência as outras pessoas. Daí que a violência não supõe uma relação de amor nem de ódio, mas unicamente de rivalidade. O objeto da violência fundamental, a pessoa contra a qual ela se dirige é identificada simplesmente como um "outro", ao qual o indivíduo busca sobrepor-se, dentro do trágico dilema "ou ele ou eu". Oportuna e ilustrativa se faz aqui a análise etimológica da palavra violência. Ela provém do radical grego antigo "bi", que deu lugar tanto ao substantivo "bia" (violência), como ao substantivo "bios", que justamente significa vida. (Ver Bergeret, 1990, p. 11). É por demais curioso e significativo observar que violência e vida têm, pois, uma mesma raiz etimológica.

Quando a criança nasce, esses "outros" para ela são seus pais, pois são eles que terão a grave função de colocá-la em contacto com a realidade e de lhe mostrar os limites que esta impõe à sua onipotência. Por sua vez, a criança não deixa de ser também um obstáculo aos pais, ao lhes tomar quase todo o tempo, o espaço e atenção. Ela lhes "toma" a vida. Por isto mesmo, os pais, sobretudo na medida em que ainda imaturos, tendem a reviver, na relação com seus filhos, os seus aspectos infantis ainda não suficientemente resolvidos.

Conforme a criança vai crescendo, vai se desenvolvendo e amadurecendo nela a pulsão da libido, isto é, a pulsão sexual, a pulsão do amor. Ora, na medida em que as condições ambientais forem saudáveis e favoráveis, a libido vai se "alimentar" da energia da violência fundamental e vai colocá-la a seu serviço. Libido, que tem a ver com amor, e violência fundamental não se opõem, pois esta, como já dissemos, é antes de mais nada uma energia vital, que procura romper os obstáculos. Ocorre que, neste "romper obstáculos", a violência, na medida em que não devidamente socializada e orientada, isto é, não integrada pela libido, pode se tornar de fato destrutiva. Tudo vai depender da forma como ela vai ser aproveitada e canalizada pela libido, dentro de condições saudáveis e favoráveis do ambiente, sobretudo do ambiente familiar. A maturidade psicológica consiste numa organização da vida psíquica sob o primado da libido, sob o primado da pulsão do amor. E o grau de maturidade e ajustamento da libido vai depender da resolução sadia do complexo de Édipo. Desta resolução vai depender a capacidade do indivíduo de desenvolver relações saudáveis com as pessoas, tanto do sexo oposto, como do mesmo sexo. No complexo de Édipo, o que vai estar na base para ser resolvido, segundo Bergeret, é exatamente a rivalidade da criança com seus pais. A principal repressão que ocorre no complexo de Édipo não é sobre o incesto, mas sim sobre a violência, sobre a rivalidade entre pais e filhos. A boa resolução e a superação do complexo de Édipo supõem, não a repressão da violência, mas sua canalização e aproveitamento. O instinto da violência fundamental é arcaico, precede as pulsões libidinais e situa-se no mesmo nível das pulsões de auto-conservação. Como já dissemos, suas energias, suas pulsões não têm um direcionamento definido, não têm um objeto definido. Seu único objeto é o outro que se coloca à frente do sujeito a lhe impor limites, dentro do já citado trágico dilema "ou ele ou eu". Já as pulsões libidinais, as pulsões de amor buscam um objeto ao qual se dirigem, têm um alvo, sendo que esta direção, este objeto e este alvo se diferenciam cada vez mais na medida da maturidade dessas pulsões, na medida em que o indivíduo amadurece em sua capacidade de amar. Na medida em que essa violência fundamental não é integrada à libido, ao amor, ela se torna perversa. Tais fracassos de integração vão depender primordialmente, entre outras coisas, do clima familiar, do quanto for saudável o relacionamento dos pais entre si e do quanto os pais se mostrarem acessíveis, confiáveis e amorosos perante a criança. Tudo se complica na medida em que o relacionamento dos pais entre si for pouco saudável e em que, no relacionamento deles com a criança, eles se projetarem nela e confundirem os sentimentos e impulsos dela com os seus próprios sentimentos e impulsos não resolvidos.

A Vítima do maior crime da humanidade disse: os homens não sabem o que fazem. Freud, por sua vez, em "Totem Y Tabu", Parte IV, fala dos impulsos hostis dos filhos contra o pai, impulsos esses que, na horda primitiva, teriam se traduzido em ato concreto pelo qual os irmãos se uniram e mataram o pai tirano, a fim de se livrarem de seu jugo. Posteriormente, os irmãos arrependeram-se de seu ato e passaram a representá-lo simbolicamente em cerimônias de sacrifícios, ou seja, passaram a pensar sobre seus atos. Com o tempo, portanto, através das gerações, o homem vai evoluindo em seus processos psíquicos e vai desenvolvendo sua capacidade de pensar antes de agir. Esta mesma evolução observa-se na trajetória individual da vida de cada pessoa. Freud encerra sua magistral obra "Totem Y Tabu" com a frase de Goethe, em Fausto: "No princípio era a ação". Portanto, o homem, segundo Freud, não tem garantida e acabada sua capacidade de pensar sobre seus atos, mas ela deve ser conquistada por sua evolução e maturidade, o que equivale a dizer que também deve ser conquistada por sua evolução e maturidade a sua capacidade de saber o que faz.

Os filhos dos homens em geral não sabem exatamente o que fazem. A opinião pública, a mídia, as massas, os modismos, as conveniências emergentes, os sectarismos, as ideologias os cegam. As defesas inconscientes e os interesses pessoais e de classe os cegam. A rotina os cega. Os hábitos os cegam. No exercício profissional dos legisladores, dos operadores do Direito e dos técnicos que a estes assessoram, o cuidado e o esmero técnicos, por si sós, não garantem que o profissional pense profundamente no que faz. Na medida em que o profissional não pensa sobre o que está fazendo, ele não sabe exatamente o que está fazendo.

O mesmo se deve dizer sobre os criminosos. Independentemente da questão da imputabilidade, eles não sabem exatamente o que fazem. Aliás, os limites que se estabelecem entre a imputabilidade, semi-imputabilidade e inimputabilidade constituem mera ilusão de um pensamento falsamente objetivo, ilusão essa da qual o Direito cegamente se serve, para tornar suas decisões ao menos aparentemente e formalmente corretas e "legalmente" bem fundamentadas.

Unindo a justificativa da grande proclamação de pedido de perdão de Cristo e o pensamento de Freud sobre os atos do homem e sua capacidade de pensar sobre eles, chega-se à conclusão de que os filhos dos homens não sabem exatamente o que fazem. E este "não saber" é o companheiro fiel da violência, ou ainda, muitas vezes é a própria razão da mesma, nas suas mais diversas faces de manifestação. É o "não saber" do legislador, o "não saber" das leis, o "não saber" dos técnicos, o "não saber" dos operadores ("serviçais") do Direito, o "não saber" dos que administram a execução da pena, é o "não saber" dos delinqüentes.

O "não pensar" sobre o que se faz, o "não saber" o que se faz é parte integrante da história da violência do homem. Ocupa um lugar de destaque entre as razões da violência. Por sua vez, o "pensar" sobre o que se faz, o "saber melhor" o que se faz é parte integrante da história da reconciliação, tem como perspectiva a reconciliação e a paz. Enquanto as perspectivas da violência forem unicamente as punições e novas leis mais severas, as perspectivas da violência continuarão sendo novas violências. A história bíblica já no-lo demonstrou, a Tragédia Grega no-lo demonstrou, os fatos atuais no-lo demonstram. Como já dissemos no início, o primeiro ato de violência foi uma lei tirana e déspota. Temos que ter muito cuidado com as leis e com as punições. Temos que nos perguntar se elas foram de fato "pensadas" e se quem as editou e as introduziu sabia de fato o que estava fazendo.

Conforme dissemos acerca da violência fundamental, proposta por Bergeret, a resolução e os encaminhamentos saudáveis da mesma se dão através de sua integração pelas pulsões libidinais. Na própria história psicodinâmica do indivíduo, sua violência não se resolve através de castigos, de repressões, mas através da experiência de amor, de simbolização e de criatividade. Por que então na sociedade seria diferente? Por que na sociedade as punições, as penas teriam o condão de, por si sós, canalizar a violência para formas socialmente sadias de solução?

A reconciliação não é um simples gesto de "dar as mãos" como se nada tivesse acontecido e se quisesse negar o conflito. O conflito jamais deve ser reprimido e nem negado ou desconsiderado. O conflito deve ser resolvido e, dessa resolução, faz parte a reconciliação, que é a reaproximação das partes. Entendam-se por partes não única e simplesmente o agressor e sua vítima, mas também (e sobretudo) o agressor e a sociedade.

Para concluir, diremos que, se no micro-sistema chamado família o encaminhamento de solução do dilema da violência está no amadurecimento da libido, no amor realizado de forma adulta e madura, outro não poderia ser o caminho, ao se falar da violência no macro-sistema assim chamado sociedade ou humanidade. O caminho para uma vida mais saudável, do ponto de vista da violência, não passa pelos castigos, pelas penas cada vez mais severas, pelas formas explícitas ou disfarçadas de vingança. Tal caminho tem um sulco principal e norteador, que se chama pacificação, reconciliação. Para Hassemer, há necessidade de se incrementar um grande processo que ele chama de solidarização.

As razões da violência costumam estar na própria violência. Os filhos dos homens, frente à violência das interdições aos seus anseios, enveredam pelos descaminhos e, não sabendo exatamente o que fazem, cometem a violência. Quanto às perspectivas da violência, dependendo do quanto os filhos dos homens sejam capazes de pensar e de saber o que fazem, elas serão, ou o acirramento da violência, ou um aprofundamento na consciência sobre a mesma e na capacidade de administrá-la, através da paz e da reconciliação. Os filhos dos homens não sabem exatamente o que fazem. Se assim é, muito menos saberão tirar proveito das punições severas por seus crimes, mesmo porque quem as impõe, também não sabe exatamente o que está fazendo. Não resta pois outra alternativa, outro caminho a não ser o da consciência e, por conseguinte, o da reconciliação, como princípio norteador geral. Qualquer punição ou mesmo decisão conciliatória só será útil na medida em que promover a reconciliação, entendida esta como um processo evolutivo, por parte de todos os envolvidos, de saber pensar, de tomada de consciência sobre seus atos e seus possíveis desdobramentos, procurando cada um sentir-se no papel do outro, a fim de também pensar sobre o comportamento desse outro e de saber o que ele fez. Utopia? Sem dúvida.

Chamemo-lo, porém, preferivelmente de horizonte a ser perseguido.

Afinal, outra não é a direção apontada pela Psicanálise para a trajetória vital do indivíduo, quando diz que a maturidade se conquista graças à integração do instinto de violência pelo instinto de vida, pelas pulsões da libido. Reconhece Freud, reconhece Melanie Klein, reconhece Bergeret: a maturidade psíquica, a capacidade de simbolização, ou seja, de pensar sobre os próprios atos se dão pelo primado da libido, pelo primado das pulsões do amor. E se assim é na trajetória das violências e dos conflitos inerentes à história do indivíduo, assim também o será na trajetória das violências e dos conflitos inerentes à história da humanidade.

O autor é psicólogo, membro do Conselho Consultivo do IBCCrim, e professor doutor
da Faculdade de Direito da USP e de Psicologia Criminal da Universidade Mackenzie

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