quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A Arte da Retórica

No caso, com certeza!


Se ele disser que 'no caso, Aspirina a gente não vai tá tendo, hoje', a coisa muda completamente de figura



Equivoca-se quem pensa que falar bem é falar claro. A arte da retórica reside, na verdade, na habilidade de confundir. Afinal, se digo algo e você entende de cara, vai logo se achando mais inteligente do que eu: mau negócio. Se, contudo, sou capaz de temperar as frases mais simples com um molho de obscuridade, com uma calculada pitada de empulhação, o ouvinte pensará que sei mais do que revelo: ponto para mim.
Vejamos: você entra numa farmácia, pergunta se tem Aspirina e o funcionário responde com um peremptório "não". O que você pensará? Que aquela é uma farmácia ruim. Se, porém, ele disser que "no caso, Aspirina a gente não vai tá tendo, hoje", a coisa muda completamente de figura. O "no caso" sugere que, numa situação normal, ele teria Aspirina. Logo, "hoje", estamos numa situação anormal. Qual seria essa situação? Haveria um surto de enxaqueca, no bairro? Boatos de que a Copa e as Olimpíadas levariam à falta de ácido acetilsalicílico teriam desencadeado uma busca frenética pelo produto? Você não sabe, ele sabe, e, num segundo, o que era uma farmácia vagabunda transforma-se numa farmácia sob estado de exceção, enquanto você, em vez de um cliente insatisfeito, torna-se um náufrago à deriva no mar da especulação.
Convencido de que aquele é um estabelecimento digno, de que só não tem os comprimidos de que necessita por conta dos misteriosos eventos pregressos, você resolve dar uma segunda chance. Em vez de ir à farmácia da outra esquina, pergunta se haverá Aspirina, no dia seguinte. O funcionário sorri: "Com certeza!".
"Com certeza!" é irmã de "no caso". Ambos são filhos da obscuridade com a empulhação. "No caso" é o rebento discreto, melancólico e introspectivo, "com certeza!" é falante, solar e brincalhona. Os dois, contudo, trazem a mesma carga genética: fazem-nos crer que, por trás da vaguidão ou do entusiasmo escondem-se importantes e desconhecidas informações.
Vejamos: se o farmacêutico respondesse com um mero "sim", o que você pensaria? Que as Aspirinas chegariam amanhã por alguma razão prosaica, talvez porque toda quinta-feira elas chegam e não há aí nenhum mérito do funcionário. Já o "com certeza!" instaura aquele estado de exceção: tamanho júbilo e segurança sugerem que a chegada das Aspirinas é o resultado de grande esforço. Você imagina o farmacêutico ameaçando o distribuidor, dizendo que se não receber o carregamento até as oito da manhã vai fechar um acordo de exclusividade com o Bufferin; você o vê mandando comprar Aspirinas em outras farmácias, no meio da madrugada; vislumbra-o pedindo para um primo mandar dezenas de cartelas via Sedex 10, diretamente da matriz, na Alemanha -e, por um momento, acredita que ele seja capaz até de acabar com a greve dos Correios.
Que beleza é a oratória! Você não sabe o que o sujeito fez para conseguir as Aspirinas. Não sabe sequer por que faltaram Aspirinas. Ignora, aliás, muitas outras coisas neste mundo feito de dúvidas irremediáveis, mas algo, no caso, você sabe: que amanhã, naquela farmácia, haverá Aspirinas, com certeza!
Se este farmacêutico não domina a arte da retórica, não sei quem poderia dominar.

Por: Antonio Prata
antonioprata.folha@uol.com.br

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